Falar algo totalmente inédito sobre Os Esponsais dos Arnolfini¹ é uma tarefa quase impossível, mas não é motivo para que se deixe de refletir sobre essa fascinante pintura, realizada em 1434 por Jan van Eyck, pintor que viveu entre o final do século XIV e a primeira metade do século XV. Van Eyck atuou na região denominada Flandres, no norte da Bélgica, e é ainda considerado um dos grandes pintores flamengos do início do Renascimento no norte da Europa. Segundo Gombrich (1999, p. 223), após a ascensão de Giotto, os italianos ansiavam pela nova arte que faria renascer os antigos – e gloriosos – estilos romano e grego e, por isso, se empenhavam em estudar a natureza e a matemática, para criar novos estilos e realizações inéditas, como foi o caso da perspectiva. Nessa mesma época, com intenções revolucionárias similares e resultados diferentes, van Eyck revolucionava o jeito de pintar do Norte da Europa.

Considerado o inventor da pintura a óleo, que se compara em inovação à descoberta da perspectiva pelos italianos (GOMBRICH, 1999), van Eyck foi capaz de criar seu próprio instrumento quando se viu insatisfeito com aquele que era o vigente, neste caso, a têmpera. Essa ambição para solucionar as próprias limitações foi o que permitiu ao artista executar peças tão complexas, realistas, vivas e ricas, dentre as quais se destaca Os Esponsais dos Arnolfini, que trazem também outras características que tornam o trabalho de van Eyck tão distinto e importante.
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A palavra “esponsais” designa “recíproca e solene promessa de casamento entre noivos”², que condiz com a interpretação de Gombrich (1999, p. 240) de que a pintura de van Eyck retrata efetivamente um momento: o acontecimento da troca de votos de união matrimonial entre o marcador italiano Giovanni Arnolfini e sua noiva Jeanne de Chenany, cuja testemunha é o próprio pintor que o retrata. Esse aparente recorte tão específico de tempo imprime ainda mais realismo na cena, que vai além da execução impecável da pintura e entra quase na captura fotográfica (GOMBRICH, 1999, p. 243), que hoje em dia ainda é considerada uma espécie de prova de ocorrência daquilo que está na imagem.
A famosa inscrição em latim “Johannes de eyck fuit hic”, que se traduz em “Johannes de eyck esteve aqui” , é considerada uma das primeiras assinaturas em pintura da história. Na Idade Média, as obras de arte não eram assinadas, pois a produção era regida pelo senso de coletivo dos artesãos, os produtores das obras de arte sacra do período. Como não havia qualquer autonomia de criação dentro das temáticas já pré-estabelecidas, também não se construía a ideia de autoria, já que as peças eram representações religiosas que não tinham qualquer intenção de enaltecer os artesãos ou suas técnicas, mas queriam traduzir as passagens bíblicas ao povo iletrado da época. Por mais que novas técnicas e formas de representação tenham sido inventadas ou aprimoradas, a autoria permanecia diluída no senso coletivo – não pela união, mas pela ausência de individualidade. Gombrich (1999, p. 240-243) analisa que a inscrição em latim pode ser vista como parte do atestado de testemunho do casamento do casal, em vez de uma assinatura de autoria da obra. Isto é reforçado pela expressão “esteve aqui”, isto é, esteve naquele quarto presenciando aquele momento e, ainda, está dentro da pintura.
A frase foi grifada pelo autor logo abaixo do espelho que se encontra na parede ao fundo da pintura. Nele estão refletidos os ocupantes do quarto: o casal, o pintor e, possivelmente, mais uma pessoa, talvez uma outra testemunha. Esse pequeno mas significativo detalhe conversa com a assinatura ao atestar a presença do autor no quarto e na pintura; pela terceira vez, ele reafirma seu testemunho, ao ilustrar sua presença naquele quarto durante os votos nupciais. A presença da suposta quarta pessoa também indicia que o quadro foi usado como registro da união matrimonial do casal.
Mesmo que tenha sido essa a intenção, de qualquer forma van Eyck legitima sua autoria na superfície da tela, desafiando toda a ilusão de profundidade que ele mesmo criou. Nas telas com motivos religiosos, eventualmente eram escritas palavras na superfície, mas, devido à natureza mística, longe da realidade mundana dos fiéis, a quebra que isso representava na cena não alterava sua compreensão ou tirava seu caráter religioso. No caso da pintura de van Eyck, a cena íntima e caseira efetivamente é perturbada pela inscrição aparentemente deslocada; ela parece flutuar – como no caso das pinturas sacras – mas isso causa um estranhamento muito maior do que no primeiro caso. As palavras inscritas alteram a percepção da cena da vida real, que não comporta o elemento da inscrição tão naturalmente quanto uma cena religiosa, e a assinatura acaba colocando em cheque toda a sensação de realidade criada pelo pintor ao reconhecer a superfície plana da tela.
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Van Eyck carregava suas obras de um realismo sem precedentes no Norte europeu, que só encontrava alguma equivalência na arte italiana que se desenrolava simultaneamente. Porém, o enfoque era outro: enquanto os italianos estudavam matematicamente uma composição, van Eyck se focava em todos os detalhes que compunham uma cena: o esmero em representar com vivacidade qualquer elemento, a partir da observação, “até que a totalidade da sua pintura se convertesse num espelho do mundo visível.”³
No retrato do Casal Arnolfini4, essa observação e composição de elementos através da observação fica evidente. A representação do quarto e dos objetos é feita de maneira a dar profundidade ao ambiente, através de uma aparente perspectiva, porém uma análise geométrica das linhas revela que não houve um planejamento matemático como faziam os italianos. Apesar de todas as linhas apontarem para certas “áreas de fuga”, não se agrupam em pontos de fuga bem definidos, ou seja, não obedecem às teorias tradicionais da perspectiva, que são observadas nas pinturas italianas do mesmo período.

Talvez exatamente por essa ausência de estudo matemático que a pintura de van Eyck seja tão real, mais crível e até mais natural do que aquelas feitas na Itália. Apesar das regras matemáticas traduzirem –parcialmente – o comportamento do mundo, elas surgiram a partir da observação e do estudo do mesmo. E o mundo tem infinitas variáveis, que, se fossem todas incorporadas na regra matemática, fariam com que essa deixasse de ser um padrão para se adaptar às infinitas possibilidades das inúmeras combinações de elementos, por mais básicos e previsíveis que seja. Essa gama de possibilidades sem fim forçam a criação de modelos experimentais controlados, que se adequam a situações ideais; mas acaba que, na realidade, mensurar todos os comportamentos de um mundo em eterna mudança se torna uma tarefa impossível.
Na Itália se aplicava o cálculo matemático na construção dos cenários das pinturas, mas era virtualmente impossível aplicar os mesmo cálculos para se projetar uma figura humana, orgânica, cheia de volumes e envolta em tecido. O que se sucedia era um ambiente calculado povoado de figuras observadas, que gerava um contraste que ressaltava a dificuldade de se aplicar as regras aos elementos orgânicos e deixava a cena bastante irreal, apesar da ilusão de profundidade do ambiente criado de forma matemática. Na pintura de van Eyck, a análise das linhas mostra que não houve uma preocupação matemática de encaixe e execução geométrica, mas preocupações pictóricas, de representação do ambiente, e simbólicas, já que elas sutilmente apontam para os dois principais elementos do quadro: as mãos dadas do casal recém casado e a assinatura de testemunho de van Eyck. O grande trunfo do pintor acaba sendo a observação do ambiente, da luz, dos objetos e das pessoas, que traz grande naturalidade à cena que parece acolher e integrar todos os seus elementos em harmonia. A obra se torna impregnada de presença, tanto do pintor, quanto dos retratados e, ainda, de todos os objetos, que receberam igual atenção em sua execução; van Eyck não negligencia um elemento sequer, compondo esta cena tão íntima como uma captura fotográfica.
Toda essa construção da intimidade e da presença do artista naquele momento nos coloca atrás dos olhos do próprio autor, como se estivéssemos nós mesmos testemunhando os votos de união do casal. A inserção na cena privada nos coloca no mesmo ambiente e em possível diálogo com as pessoas que nos observam de volta – Giovanni Arnolfini e Jeanne de Chenany.
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Referências
¹Denominação do livro de Gombrich (1999, p. 240). A adoção deste nome para a pintura faz sentido junto da explicação do autor a respeito do momento de realização da pintura.
2 http://webdicionario.com/esponsais
³ GOMBRICH, E. H. A História da Arte. 16ª edição. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 1999. p. 239.
4 Outro nome pelo qual a obra é mais conhecida.
Sensacional esses detalhes que estão na pintura, as pequenas estátuas, o espelho, o cachorro, as frutas no chão e na janela, as sandálias… simplesmente incrível!