O Triunfo do Irracional

O movimento surrealista, inicialmente de cunho literário, foi criado por André Breton em 1924, oficialmente o ano de publicação do primeiro Manifesto do Surrealismo, apesar das práticas literárias características do movimento terem começado em 1919, pelo escritor e por seus amigos. No ano seguinte, Breton publicou Surrealismo e Pintura, o que incluiu as artes plásticas oficialmente no movimento artístico.

Mesmo considerado apolítico, o movimento surrealista surgiu após a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918) e suas intenções podem ser interpretadas como uma forma de reação à barbárie do conflito. Vários dos participantes no movimento foram convocados a lutar na guerra. Fiona Bradley diz que “o primeiro manifesto apresentam o surrealismo como uma alternativa a esse estado de desesperança”¹ causado pela Primeira Guerra, alternativa essa que usa da experimentação com o escape do racional e da razão,  que foram os motivos gerais pelos quais a guerra surgiu em primeira instância.

No seu primeiro manifesto de 1924, Breton escreve sobre o homem: “É que ele pertence, de agora em diante, de corpo e alma, a uma imperiosa necessidade prática.”² Essa praticidade criticada pelo autor é a “razão ocidental” que levou ao conflito da Primeira Guerra Mundial que, mesmo fruto do pensamento racional ocidental e utilizando de armas criadas por essa razão, foi um dos acontecimentos contemporâneos mais bárbaros e mortíferos que se tem notícia. Milhões de pessoas morreram nesse conflito que utilizou tantas novas e fatais tecnologias bélicas desenvolvidas pela “razão ocidental.” Segundo o historiador Eric Hobsbawm, foram significativos 10 milhões de mortos na Primeira Guerra:

A Segunda [Guerra] não produziu equivalentes dos monumentos ao soldado desconhecido, e depois dela a comemoração do Dia do Armistício (aniversário do 11 de novembro de 1918) foi perdendo aos poucos sua solenidade de entre guerras. Talvez 10 milhões de mortos parecessem um número mais brutal para os que jamais haviam esperado tal sacrifício do que 54 milhões para os que já haviam experimentado a guerra como um massacre antes³

O pintor alemão Max Ernst (2 de Abril de 1891 – 1 de Abril de 1976) foi um dos convocados para a guerra como soldado e escreveu “Max Ernst morreu em 1˚ de Agosto de 1914. Ressuscitou em 2 de Novembro de 1918, na forma de um rapaz que queria ser mágico e pretendia descobrir os mitos de seu tempo.” Novamente de acordo com Fiona Bradley, “Ernst documentou a suspensão de sua persona artística por motivo de guerra ou ‘morte’ temporária.” 4

Após sua “ressurreição”, Ernst entrou para o Dadaísmo, movimento de contestação da arte racional que eclodiu simultaneamente em Zurique, Colônia e Nova Iorque no começo do século XIX. Em 1916, o grupo precursor do movimento, composto por Hugo Ball, Tristan Tzara, Marcel Janco, Jean Arp e Richard Huelsenbeck, entre outros, lançou a revista Dada, que tornou-se o veículo para as obras e escritos do grupo. Na cidade de Colônia, Max Ernst foi um dos precursores do Dadaísmo, junto de Jean Arp, após se mudarem de Zurique.

O Dadaímo nasceu alguns anos antes do surrealismo, mas as duas vanguardas conviveram e colaboraram por vários anos. Sobre o contexto e o sentimento pós-Guerra do nascimento dessas vanguardas, Eric Hobsbawm corrobora ao dizer que “o dadaísmo tomou forma […] como um angustiado mas irônico protesto niilista contra a guerra mundial e a sociedade que a incubara, inclusive contra sua arte.”5

A revista Dada chegou a Paris e a Breton, que, junto com Soupault e Aragon, lançou a revista Littérature em 1919, após a terceira edição da Dada. O título era claramente irônico, como o início dos movimentos dada e surrealista, ao tentar afirmar que aquilo contido na revista era classificado como o que na época se entendia por literatura, apesar da intenção ser o distanciamento desse senso comum.

Em 1920, Tzara foi a Paris e iniciou suas duas “temporadas dadá”, séries de manifestações dadaístas na capital francesa. Junto com Picabia, Tzara foi bem recebido pelo grupo francês e do encontro resultou uma série de manifestos dadaístas escritos por vários dos artistas no mesmo ano. Mas, apesar do constante contato entre os dadaístas e os ainda não nomeados surrealistas, em 1921 houve o rompimento entre os grupos, dando origem à uma nova fase da revista Littérature, que culminaria na “‘saison des sommeils’, a ‘temporada dos sonos’, um tempo de intensa investigação obre o potencial do inconsciente,”6 a partir da qual nasceria propriamente o surrealismo. Mesmo com seus nascimentos em reação a um momento político e de suas características “internacionalista, antibelicista e antiimperialista,”7 os movimentos dadaísta e surrealista nunca se aprofundaram propriamente no tema.

Sobre esse período, Hobsbawm (1995, p. 180) diz que

enquanto o dadaísmo naufragava no início da década de 1920 com a era de guerra e revolução que lhe dera origem, o surrealismo saía dela com o que se tem chamado de ‘uma súplica pela ressurreição da imaginação, baseada no Inconsciente revelado pela psicanálise, os símbolos e os sonhos’ (Willet, 1978).

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Apesar do distanciamento político do movimento ao longo dos anos, em 1937 Max Ernst pintou duas obras, ambas intituladas Hausengel, em reação à Guerra Civil Espanhola (1936-1939), a mesma que inspirou a pintura Guernica de Pablo Picasso. Segundo o próprio Ernst

Quase que a única pintura que produzi depois da derrota dos republicanos na Espanha foi ‘Hausengel’. Esse, naturalmente, era um título muito irônico para um tipo de besta patética que simplesmente esmaga e destrói tudo em seu caminho. Essa era a minha impressão na época a respeito dos eventos que estavam acontecendo no mundo, e eu estava certo a respeito disso. Preste atenção no que está acontecendo no mundo agora, pelo menos nos últimos anos. Quem fez a história mundial? Não foram as pessoas mais racionais. Os loucos fizeram. Então, se a pintura é o espelho de uma época, deve ser louca para mostrar a imagem do que essa época é.8

A fala de Ernst se relaciona com os primórdios do ainda por ser chamado de surrealismo, pois diz que as artes plásticas são reflexo de uma época e de um contexto. Dizer que foram os loucos que construíram a história mundial, ainda, não é contraditório às críticas à “razão ocidental” do começo dos movimentos de contestação: tamanha foi a vontade de dominação e expansão e tão agressivos e poderosos foram os produtos bélicos dessa razão, que os eventos produzidos foram proporcionalmente catastróficos e irracionais. Tanta busca pelo controle racional levou ao caos da guerra. E foi dessa racionalidade que as artes plásticas tentaram fugir, tanto no dadaísmo quanto no surrealismo, procurando a imaginação, os sonhos, o inconsciente e até a loucura, como disse Breton: “Não será o temor da loucura que nos forçará a hastear a bandeira da imaginação a meio pau.”9

As duas pinturas de mesmo nome, ambas datadas de 1937, claramente tem uma relação entre si, com alguns elementos em comum e parecem se configurar em sequência,  apesar da sequência de execução dos dois quadros ser desconhecida.

Figura 1- Max Ernst. Hausengel [The Angel of Hearth and Home]. 1937. Óleo sobre tela. 54 x 74 cm. Staatsgalerie Moderner Kunst, Munique, Alemanha.10
Uma delas, de proporções menores (54 x 74 cm), representa dois elementos separados que cruzam a paisagem ocre (Figura 1). Um dos seres, o maior dos dois, se aproxima das proporções de um homem, com dois braços ao alto, duas pernas abertas e flexionadas, uma cabeça pequena, mãos e pés, e, por sua posição, parece desembestar pelo cenário. Sua cabeça tem uma formação que se assemelha a um bico com dentes, que o torna agressivo e irracional. Logo atrás está o segundo ser da pintura, que parece ser quadrúpede pela posição de seus membros e também apresenta um bico, porém sem dentes. Seus membros inferiores tem dedos compridos e finos que lembram os de um animal. As cores são escuras e sóbrias, com predominância de tons terrosos como o marrom e o ocre, além de tons escuros de verde e um toque de vermelho vivo na criatura maior.

A segunda pintura (Figura 2), maior que a primeira (114 x 146 cm) e mais conhecida, representa uma criatura que se forma a partir da fusão de dois seres irreais, possivelmente os mesmos do primeiro quadro. Desses seres em fusão, o maior e mais proeminente é um aglomerado de tecidos coloridos retorcidos que parecem se movimentar, tomando a forma de braços flexionados com mãos ao alto, pernas abertas e uma cabeça com bico e dentes. A segunda criatura já não parece feita de tecido e apresenta uma cabeça, dois pequenos membros superiores que se fundem à criatura maior, assim como sua pélvis, e apenas uma perna ou braço que se solta do conjunto com uma mão de 7 dedos em sua extremidade. A primeira figura, maior e central, ocupa quase todo o quadro; parece inclusive que o espaço da tela foi pequeno para a criatura, já que a “mão” esquerda da figura  está quase cortada pelo limite da tela e, ainda, parece achatada, talvez para que coubesse inteira no plano da pintura. As cores são vivas, inclusive com tons mais claros e brilhantes de marrons, quase alaranjados, além do vermelho e da presença marcante do azul.

Figura 2 – Max Ernst. Hausengel [L’Ange du foyer] ou Le Triomphe du surréalisme. 1937. Óleo sobre tela. 114 x 146 cm. Coleção particular.11
Nessa mesma tela, o “pé” direito da figura maior lembra o casco de um cavalo, que no contexto descrito por Ernst, é uma referência ao conflito, ao combate e, no fim, à guerra. Apesar da mecanização das guerras após a Revolução Industrial, vista notoriamente na Primeira Guerra Mundial, a associação entre combates sobre cavalos e guerra ainda é recorrente, pois, durante a história da humanidade, foi mais comum do que a mecanizada. O casco do cavalo também representa, mais livremente, a destruição desembestada que o ser retrata, pois o trote do cavalo pode ser destrutivo e mortal quando irrefreável.

Nas duas pinturas, os seres principais parecem um aglomerado de tecidos, que parecem ter ganhado vida própria, e os seres menores são de material indefinido e sólido. Além disso, as cabeças com bicos também se repetem, o que remete ao alter ego de Ernst, Loplop, figura semelhante a um pássaro, recorrente nas pinturas do autor. A presença do alter ego como a besta pode ser associada ao envolvimento do próprio pintor na Primeira Guerra Mundial, na qual, mesmo contra sua vontade, foi um soldado e agente dentro do sistema brutal da guerra.

Em comum, as duas obras apresentam um cenário ermo, desértico, despovoado, estéril e levemente montanhoso. Esse é um “lugar nenhum”, mas que pode se assemelhar a qualquer deserto, seja visto ou imaginado. É um tipo de cenário solitário, amplo e neutro, recorrente no movimento surrealista, onde a cena imaginada acontece estranhamente sem interferência. Segundo Fiona Bradley, “o espaço onde estão situados é de muda e proibitiva incerteza.”12 Porém, as cores determinam diferentes aspectos desse cenário: na primeira pintura, as cores tanto do céu, bege avermelhado, quanto da terra, marrom esverdeado, sugerem uma luz difusa e não familiar, como se o evento acontecesse durante algum fenômeno atmosférico ou climático pouco usual, como um tempestade de areia ou leve encobrimento da luz solar durante o dia. Já a segunda pintura tem uma iluminação mais natural, com o céu azul cheio de nuvens escuras, como as de tempestade, e com tons mais neutros na terra, inclusive com a sugestão de um pico nevado no meio do deserto montanhoso.

Em ambas as pinturas, o cenário infinito e irreal, junto com uma porção de céu dominante em relação à porção retratada de terra, torna a dimensão dos seres imensa e inconcebível. A linha de visão do espectador é baixa, como se toda a cena se passasse muito acima do horizonte e, portanto, parecesse gigantesca. Essa proporção reforça o que o próprio Ernst disse sobre as pinturas: elas retratam, mais evidentemente na segunda pintura, um monstro irracional destruidor de tudo o que vê pela frente, de proporções inconcebíveis e diante do qual somos impotentes.

Todavia, dentro desses cenários com proporções similares, muda-se principalmente, além de como foi retratado o céu, o tamanho dos seres: na primeira pintura, os seres ocupam quase que só a metade inferior do plano, deixando bastante espaço livre na metade superior, enquanto na segunda, o ser ocupa o máximo de espaço possível. Essas diferenças de tamanho, cenários e proporções internas criam impressões diversas a respeito do momento que se passa em cada pintura e sugerem uma ordem de confecção. Na primeira pintura, menor, mais sóbria e com os seres aparentemente menores, a sensação do espectador é a de um observador que por acaso se deparou com a cena das duas bestas correndo pelo deserto. Já na segunda, o ponto de vista ainda mais baixo e o tamanho da criatura são diretamente ameaçadores ao observador, como se tivéssemos nós mesmos no caminho desse ser irracional e destrutivo. Associado ao fato de que a segunda pintura foi renomeada Le Triomphe du surréalisme [O Triunfo do Surrealismo] anos mais tarde, essa provavelmente foi a segunda pintura confeccionada por Ernst, considerada talvez a que mais fez jus às suas intenções de retratar a irracionalidade cheia de força destrutiva e nosso medo diante dela.

Le Triomphe du surréalisme retrata não apenas um sonho, mas especificamente um pesadelo de violência e destruição, montado de objetos inanimados que ganharam vida apenas para formar um ser brutal e sem consciência. A pintura conseguiu o triunfo, percebido anos depois, de retratar pictorica e alegoricamente uma época marcada pela irracionalidade, como inicialmente propôs seu pintor.

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Referências

1 BRADLEY, Fiona. Surrealismo / Fiona Bradley. Tradução: Sérgio Alcides. p. 11. São Paulo: Cosac Naify, 2001. 80 p.

2 TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. 3a ed., revista e aumentada. p. 169. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976. 381 p. Tradução a partir de: BRETON, André. Manifestes du surréalisme. Paris, Gallimard, 1970.

3 HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: O Breve Século XX: 1914 – 1991. p. 56. São Paulo: Cia das Letras, 1995. 632 p.

4 BRADLEY, Fiona. Surrealismo / Fiona Bradley. Tradução: Sérgio Alcides. p. 11. São Paulo: Cosac Naify, 2001. 80 p.

5 HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: O Breve Século XX: 1914 – 1991. p. 179. São Paulo: Cia das Letras, 1995. 632 p.

6 BRADLEY, Fiona. Surrealismo / Fiona Bradley. Tradução: Sérgio Alcides. p. 19. São Paulo: Cosac Naify, 2001. 80 p.

7 BRADLEY, Fiona. Surrealismo / Fiona Bradley. Tradução: Sérgio Alcides. p. 16. São Paulo: Cosac Naify, 2001. 80 p.

8 “Almost the only picture I produced after the defeat of the republicans in Spain was “Fireside Angel.”  This was naturally a very ironic title for a sort of ungainly beast that simply smashes and destroys everything that gets in its way.  This was the impression I had at the time of the way world events were going, and I was right about that.

Look what is going on in the world right now, in the last years anyhow. Who made world history? Not the most reasonable people. The madmen did.   So if painting is the mirror of a time, it must be mad to have to show the image of what the time is.” – Max Ernst: Mein Vagabundieren – Meine Unruhe. Direção: Peter Schamoni. Munique: Peter Schamoni Film, 4 de Julho de 1991. 105 min. Disponível em: <http://www.naderlibrary.com/maxernst.screen.htm&gt;

9 TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. 3a ed., revista e aumentada. p. 170. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976. Tradução a partir de: BRETON, André. Manifestes du surréalisme. Paris, Gallimard, 1970.

10 Disponível em: [http://www.pinakothek.de/en/max-ernst/hausengel]

11 Disponível em: [http://www.abcgallery.com/E/ernst/ernst24.html]

12 BRADLEY, Fiona. Surrealismo / Fiona Bradley. Tradução: Sérgio Alcides. p. 35. São Paulo: Cosac Naify, 2001. 80 p.